Pular para o conteúdo principal

A Metamorfose

Quando certa manhã Catarina Luz acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada em uma adolescente universitária de quarentena.
Não uma quarentena qualquer. Uma quarentena causada por uma pandemia mundial, um vírus chinês que se espalhou pelo mundo todo. Nem os Estados Unidos conseguem achar a cura - talvez a Guerra Fria não tivesse acabado (e talvez ela tenha um final diferente do que o esperado).
Enfim, o principal não é o vírus. A grande questão é que há pouco mais de um mês, nossa jovem protagonista havia mudado de cidade. Saído de casa. Ido morar sozinha. Quer dizer, não exatamente sozinha. Em uma cidade com vários de seus amigos, em um prédio com vários de seus amigos. A vida até parecia mesmo uma festa. E em geral ela era. 
Talvez essa seja uma visão tendenciosa, já marcada pelos olhos da saudade, da melancolia, do saudosismo. O melhor é sempre o que não temos. Ou pode ser que não. Pode ser que a vida fosse boa daquele jeito mesmo sim.
Agora, depois do gostinho de liberdade, Catarina estava de volta na sua cidade natal. Na casa dos pais. E sem poder sair de casa pra ver seus amigos e familiares. A única coisa que lhe restara de sua nova - que, rapidamente, virara antiga- vida era a Universidade. A parte ruim da Universidade. Não as conversas na hora do almoço, os trotes dos veteranos, as discussões com os amigos calouros. Mas sim os trabalhos, as provas, os assuntos difíceis. E tudo agora online. Sem o contato humano, o bom dia do professor às 4 da tarde, a sala quente porque ninguém ligava o ventilador. Somente uma tela, professor de um lado e alunos - supostamente- do outro.
É de se imaginar que esse cenário possa enlouquecer qualquer um. E, veja bem, nossa personagem se considerava introvertida, tímida, antissocial, pouco dada à interação social, ainda mais fora de casa. Agora ela não podia esperar pelo momento em que ela ia sair de seu apartamento, conversar pessoalmente com seus conhecidos, ou até mesmo com desconhecidos. Sua vida girava em torno da expectativa pelo momento em que seria decretado o fim da quarentena por causa da descoberta da vacina ou da cura do vírus, ou mesmo por causa da inconsequência dos governantes. Ela não se importava com o motivo. Ela só queria que o pesadelo acabasse.
Um certo dia, o pesadelo acabou. E, assim como no filme de Nolan, Catarina descobriu-se em um fenômeno de “inception”. As festas, as bebidas de qualidade - e cores- duvidosa, as novas amizades inimagináveis, o novo mundo, nada daquilo jamais acontecera fora do plano onírico. Ainda era setembro de 2019. O vestibular ainda não tinha acontecido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No futuro, todo mundo é meio bobo

   Como você imagina o ano de 2070? O paraíso da distribuição de renda? Ou o domínio total das grandes empresas capitalistas? Carros voadores, robôs, inteligência artificial? A ideia que temos de futuro não costuma se distanciar muito dessa visão dominada pela tecnologia. O que a gente se esquece é que nós já estamos em 2020. Nós somos o futuro imaginado por alguém há 20, 30, 40 anos. E a expectativa também era de carros voadores, robôs, inteligência artificial. Isso aconteceu?    A resposta é mais ou menos. Algumas expectativas foram correspondidas, outras não. Quando o filme “De volta para o futuro” fez 30 anos, foram inúmeros os posts que discorriam sobre quais previsões foram certas e quais não foram. Mas o que me interessa não é isso. Isso já tem demais na rede.     O que me interessa é como todo mundo no futuro parece meio bobo.    Os óculos de realidade virtual, antes artigos de ficção científica, depois artigos de luxo e agora acessíveis a qualquer criança com condições

Caim, de José Saramago

Uma história do Velho Testamento, sob os olhos de um personagem inusitado    A história de Caim é a seguinte: Caim e Abel são irmãos, o primeiro agricultor e o outro pecuarista. Ambos fazem oferendas para Deus, porém apenas as de Abel são aceitas. Caim, enciumado dessa preferência divina, assassina o irmão. Até aí tudo bem, essa história já é bem conhecida por todo mundo. Porém, quando Deus aparece para Caim, logo após o assassinato de Abel, o fatricida, sem papas na língua, aponta para o Senhor de que ele é cúmplice do crime, ou ainda o mentor intelectual, e que se quisesse poderia ter impedido o crime. Assim, eles entram em um acordo, e o castigo de Caim é andar pelo mundo sem rumo.    A partir daí, Caim começa a "viajar no tempo", ou, pelas palavras de Saramago, a andar por vários presentes. Ele então presencia vários acontecimentos do Velho Testamento, já bem conhecidos pelos cristãos. O primeiro deles é o quase assassinato de Isaac pelo seu pai, Abraão. Caim im